Hoje foi dia da consulta mensal da Maria no pediatra. Momento de que muito gostamos e que nos deixa sempre um pouco ansiosos para saber se engordou se cresceu se está a desenvolver-se de acordo com os padrões típicos da idade...
Mas hoje não foi apenas um dia de consulta. Acho que tive hoje um daqueles momentos de clarividência que mudam a nossa vida para sempre. Eu explico.
Tínhamos nós (eu, o Filipe e a Maria) acabado de chegar e estávamos a entreter a Maria como podíamos com uma bonecada que estava no consultório, quando vimos entrar um senhor. Ouvimo-lo falar com a secretária e dizer que vinha levantar uma carta com o Dr. Pedro (pediatra da Maria). Sentou-se e olhamos imediatamente para ele e de seguida um para o outro.
Algo na voz daquele senhor e depois na forma como se sentou, como passava a mão na cabeça, como olhava para tudo sem nada ver me chamou a atenção.
Juntou-se a este, um outro senhor. Agia de forma idêntica e tremia. Tremia muito. Mãos, pernas, pés... Foi este senhor falar com a secretária e dizer que para além de levantar a carta pretendia dar uma palavrinha rápida ao pediatra.
O Filipe comentou logo comigo que passariam à nossa frente sem nenhum problema. E nem precisamos de o dizer, porque assim que se abriu a porta que leva ao consultório, o Dr. Pedro veio buscar os 2 senhores e entrou com eles de imediato.
Comentamos que algo grave deveria passar-se.
Uns minutos depois, não sei precisar sequer quanto tempo passou, os 2 senhores sairam, apertaram a mão do médico e foi a nossa vez de entrar.
O pediatra da Maria tem alguma idade (diria que talvez perto de 70 anos). É um médico reconhecido e em quem confiamos (por isso o escolhemos) e tem um certo ár aristocrático, mas é extremamente afável e derrete-se em sorrisos e atenção com as crianças.
Hoje foi diferente. Estava mais calado e assim que entramos no consultório olhou para a Maria, brincou com ela (estava ainda ela ao meu colo) e disse-nos em tom de desabafo: os 2 senhores que acabaram de aqui sair... a vida deles, mudou hoje. Atendi uma menina de 7 anos nas urgências da Casa de Saude da Boavista esta semana. Aparentemente tinha uma amigdalite (apresentava um quadro de febre e dizia a mãe que tinha a garganta inchada). Ele desconfiou de algo. Foram feitas análises e o resultado chegou hoje. E coube-lhe a ele, ligar à mãe daquela menina hoje, e dizer-lhe que a filha tinha que ser internada no IPO. Está com leucemia.
Arrepiei-me quando o ouvi e arrepio-me agora quando aqui escrevo num acto puro de catárse.
Ficamos, obviamente sem palavras, e abracei a Maria, ainda com mais força contra o meu peito naquele momento.
O médico, muitíssimo experiente e com décadas de profissão, que já viu (infelizmente) de tudo, estava abalado com a notícia. Disse-nos que era horrível ter que ligar a alguém e dar uma notícia daquelas. Os senhores eram tios da menina e tinham ido levantar uma carta com indicação do internamento no IPO. Os pais não estariam em condições sequer para o fazer.
Saí da consulta estranha. Feliz porque a Maria está óptima e muito desenvolta. Mas com o coração apertado por saber que aquela família, que não conheço, que nunca conhecerei está desfeita e a sentir uma dor que até ser mãe não entendia sequer a dimensão que pode ter.
E saí da consulta a pensar de que me queixo eu... Não, não tenho uma vida perfeita. Sim, sou insatisfeita por natureza e quero sempre mais e melhor e diferente e isto e aquilo. Tenho tido alguns problemas no meu emprego desde que regressei da licença da maternidade que me deixam mais sombria. E permito que tudo isto me perturbe.
Mas afinal tenho tudo...
Já há uns tempos que andava para ir tirar sangue e inscrever-me como dadora de medúla óssea e agora não há mais desculpas nem fica para depois. É desta. Não por esta menina, mas por tantas outras.
E dou por mim, que não sou propriamente uma pessoa católica (não vou à igreja, não sei sequer se acredito em Deus), a pensar como quem fala com que nos protege, que ajude aquela menina. E que numa próxima consulta possa perguntar ao médico por ela, e dizer-me que se curou.